Não foi Apenas Uma Simples Prova





Eu estava na sexta ou sétima série. Isso não faz muito tempo, mas lembro que o professor ainda recebia um enorme respeito por parte dos alunos, havia uma educação formal, caseira, que não nos permitia certos tipos de coisas, como falar palavrão nas salas de aula ou nos corredores da escola. Existia uma espécie de esperança velada no ensino público. Naquele ano teríamos uma prova de português e matemática, uma espécie de avaliação, não me recordo em que esfera, se estadual ou nacional, mas recordo que todos nos diziam que seria fácil. As provas viriam e seriamos sorteados, de certa forma: uma prova só de português pra um, uma de matemática pra outros. Peguei justamente a de matemática. Não tem como esquecer disso. E quem foi que disse que, alguma vez na vida, eu fui bom, ou gostei de matemática?
Sentado na cadeira de traz estava o Anderson. Um sujeito tímido, considerado a mente mais brilhante do colégio, aquele tipo calado, meio nerd, vestido como se fosse pra alguma festa importante, uma figura simpaticamente irritante. Era do tipo intelectual de ensino médio, vocês sabem: as bonitas arrudiavam ele para usá-lo para passarem de ano, os professores apostavam todas as suas fichas na expectativa dele salvar a reputação da escola, colocar alguma dignidade na discussão sobre a valorização do estudo, fazer dele um exemplo para os outros perdidos do nosso mundo escolar.
Ele tinha aquela cara de “filho preferido”, e isso não fazia ser um dos mais populares, sobretudo entre os homens. Um tipo de inveja juvenil. Acho que também me sentia assim em relação a ele. Mas não o ignorava. Eu. Por outro lado, numa frequentei o rol dos nerds e aficionados pelo estudo, já escrevia minhas poesias e obtive alguma notoriedade em algumas apresentações esporádicas em datas comemorativas. Sempre odiei as primeiras fileiras da sala de aula. Nunca me senti confortável naquele espaço de disputa, a vista frontal numa invadira meus olhos. Adorava o fundão, a paisagem tranquila e dispendiosa das ultimas filas e dos últimos olhares. Era tudo muito bom.
Anderson e eu não nutríamos nenhum tipo de rivalidade. Habitávamos campos diferentes de realidade geográfica e pessoal. A única distancia que existia entre mim, ele e a nossa turma era a dos grupos e facções, coisa de adolescentes bobões. Volta e meia nos falávamos. Lembro de uma conversa que tivemos sobre as palavras e da dificuldade que ele possuía, sobretudo em literatura. Ele não via graça. Fiquei besta. Ele era humano enfim. O grande gênio não mais atrapalhava meu reino. Possuía uma fraqueza.
Depois dessa conversa nos tornamos bons amigos, apesar das tribos frequentadas. Passei a admirar sua capacidade, ainda mais quando compreendi que ele não fazia aquilo para se mostrar; na realidade aquilo era uma necessidade sua. Foi exatamente ele que estava sentado perto de mim, naquela surpresa inconveniente: uma prova de matemática para me provar. De repente, um leve toque no meu ombro; era o Anderson. O futuro maior gênio do Brasil tocava as minhas costas e oferecia sua prova de português, uma ajuda mútua, uma solução pacífica, uma alto-ajuda para nossa surpresa em forma de questionário. Não entendi sua atitude. Peguei sua prova, passei a minha, discretamente, nos debruçamos em nossas provas, a minha de português, a dele de matemática. Saímos depois sem trocar nenhuma palavra sobre o ocorrido. Pouco depois a professora de português, Adriana, nos disse que tiramos as maiores notas da escola, ele em matemática, eu em português. Se isso foi verdade ou se para nos deixar alegres, não sei, mas jamais tocamos no assunto, e nunca entendi o que o levou a tal atitude.
Anos mais tarde voltamos a nos encontrar, por acaso. Eu, com uma namorada, ele dando uma volta depois de um dia de trabalho: fone de ouvido, aquele mesmo sorriso e a educação de sempre. Ainda era aquele mesmo gênio de sempre. Lembrei na hora da história da prova. Minutos mais tarde, um barulho, uma agitação, alguns tiros, um rápido comentário sobre uma tentativa de assalto, mais uma morte fria e banal, por causa de um motivo fútil. Alguém havia atirado naquele futuro gênio do país, por causa de um simples telefone celular.
Nunca cheguei a agradecer pela sua atitude e compreensão. Nunca vou entender o que o levou a tomar tal decisão. Acho que a vida teve inveja dele e de seu futuro brilhante certo. Nunca o agradecei como se deve:



“Os homens brincam de fazer poesias,
Inventam coisas, mudam o mundo.
E é difícil parar depois que se toma
Gosto por toda essa enorme poesia, imensidão, exatidão”.

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