Um certo alguém e uma certa canção do Lulu Santos



Ele deveria gostar de viajar de ônibus. Ela também. Mas as condições naquele dia não eram pra tanto. Espanto. Ela possuía um misto de enxaqueca e insônia, ele era do tipo que enjoava fácil, sentaram juntos, carro lotado. Na verdade, odiavam andar de carro. Três dias iriam percorrer até chegarem a rever o chão. Três dias. Não tinham sequer o direito de reclamar. A vida seguiria lenta, a morte vista de perto várias e várias vezes e a paisagem não iria mudar. Nessas horas todos se sentem os donos do mundo, senhores do tempo na luta contra o tédio, qualquer coisa imaginativa parecia um novo desafio para se enfrentar. Ela duvidava da vida, ele nunca tinha experimentado “açaí na tigela”, os dois imaginavam como seria interessante voar, e a viagem seguia. Parece que meia hora remetia há um dia, e o sono não vem, nunca vem, quando não se há muito dragões, mortos vivos, zumbis, alienígenas para se encarar. 
No meio de todo esse ócio depreciativo, eles se olham. Chora por dentro, a mágoa da vida, a juventude que passa sem se notar. No meio da estrada, no templo do tempo, lotado, tudo parou. Trinta segundos de olhar eram suficientes para preencherem aquele vazio. Agora conversavam. Em meio ao barulho de conversa, piadas repetidas e mal contadas, livros de autoajuda e o som de um MP3, MP4, MP10 bem alto, tocando todo tipo de música que agente nunca consegue adivinhar. Agora eles já tinham assunto suficiente; não era mais preciso se martirizar. Mesmo a noite, enquanto todo mundo dormia, e olha que TODO MUNDO é muita gente mesmo, eles debatiam empolgados assuntos diversos com direito a réplica, tréplica, esclarecimento e recordação. O carro poderia quebrar, ali mesmo, não fazia diferença alguma. “O gosto antigo da novidade” estava ali. E era palpável. 
Era como se as palavras aquecem aquele veículo e seu ar-condicionado. Agora sorriam juntos. Descobriam a beleza em coisas tão banais, histórias tão repetidas, receitas de domínio público e senso privado. Nada parecia importar: o final de “Caverna do Dragão”, um leve ensaio crítico sobre o “Chaves”, 375 motivos para impedir o retorno das “Chiquititas”, censurar “Bob Esponja”, a manipulação da Rede Globo, a estatização da “Coca-Cola”, “Fanta Uva”, “Sukita”... ai o carro parou. Fez-se um nó na garganta. Que teria ocorrido, num é sempre assim, dês de que a Progresso passou a monopolizar as nossas pobres vidas? Parece que não se tinha mais assunto também. O olhar de desejo havia substituído o olhar de curiosidade. Agora queriam vencer o silêncio, encaixar melhor os contra tempos, as pausas, as semínimas, as fusas, os compassos e as rimas. 
Seus corpos queriam partilhar o frio, apagar as páginas dos livros, mudar a cor da paisagem, passar a perna no sono, economizar os vocábulos. Já não havia mais nada para se falar. Era “O segundo que antecedo o beijo”, quando as palavras fogem, insistem em não nos procurar. Acabou Paralamas, começou a toca Lulu Santos. Ele nos obrigava cada vez mais para um outro olhar. E se olhavam. Nada. Ela desceu, tomou seu rumo com um meio sorriso, e se quer o número do telefone ele ousou solicitar. Agora ele seguia sozinho. Uma sensação mista de bom e ruim o tomava. Uma sensação tão ruim que não dá nem pra tentar explicar.

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