Pra vc botar um nome...





Crianças catando comida, logo ali, do lado de fora de uma mansão bem situada, no bairro do Leblon. O mundo parece calmo, enquanto uma família acompanha o desenrolar dos fatos daquele famoso programa de televisão. Deveria haver calma, mas, na verdade, reina,impera a solidão. O pai, advogado, ganha a vida defendendo traficantes famosos, estupradores, aliciadores de menores, patrocinador de prostitutas e outras coisas. Ele insiste que não tem nada demais, que “Não se suja com aquilo que é produzido, que faz seu trabalho, paga seus impostos (que, segundo ele, são caríssimos), dá esmolas, e fica indignado em como o governo não faz nada para tirar “esse povo pobre das ruas”.



Na TV o programa começa prometendo: uma dúzia de pessoas jovens (escolhidas milimetricamente, não pelo seu conteúdo, mas pelo seu físico mesmo), apoiadas em um carro da moda, com a torpe missão de resistir até onde puderem, com o intuito de, ao final da tortura, ganhar aquele veículo ou não, para mostrarem que bons exemplos eles tem. E as crianças achando um resto de pão, entre as sacolas de lixo, separadas genericamente pela empregada preta e analfabeta, tratada como “da família”, mesmo sem ganhar aumento dês de que passou a vender sua força de trabalho para aquele “agradável patrão”. A dona da casa é uma escritora semi-conhecida. Após ter lançado dois livros de auto-ajuda, resolveu misturar misticismos, sexo, plágios de textos de sua filha depressiva e uma pitada de realidade com suas histórias de traição, orgias, noitadas com garotos de programa e seus muitos amantes.
Deveria haver amor e respeito; era um casal conhecido, uma referência, “exemplo para quem deseja ter uma família feliz, uma relação estável, um casamento equilibrado”, diziam as muitas matérias, dessas revistas de fofoca, a maioria paga, feitas por amigos infelizes do casal, meros multiplicadores desse senso crítico que propaga essas mentiras que se observam na televisão.
O programa continua passando: sem comida, os participantes se vêem na obrigação de brigarem, enganarem uns aos outros, mentirem, trocarem mentiras e socos, em troca de alguns milhares de reais e uma rápida exposição. O apresentador diz que é “a natureza humana”, que isso é natural, “o homem é desse jeito mesmo que vocês estão vendo”, e escarra, vomita em nossos olhos e ouvidos, “enquanto assistimos a tudo passivos, sem fazer nada”. Ela afirma que não tem nada demais naquilo que faz, na vida que leva, na forma como conduz sua falsa vida, de cama em cama, amantes, drogas e solidão.
Ela culpa seu marido distante, sua fragilidade sentimental, seu casamento arranjado (um acordo entre uma família falida, como um belo nome na praça, e outra recém enriquecida), seus sonhos frustrados de ser dona de seu nariz, sua filha estranha com o mundo, e a cidade, “cheia de coisas feias, gente nas ruas, carro lotado, barulho, estrada. Não vê a hora de poder voltar à casa de praia: o marido vai fazer alguma viagem de negócio, a filha vai se esconder por ai, e ela vai pro paraíso com seu traficante musculoso, em um fim de semana cheia de loucuras, sexo violento e muita droga. Pensa nessas coisas quase todos os dias, quando não tem muito que fazer e não consegue dormir. Agora, se incomoda com as crianças do lado de fora de sua janela, “crianças malditas! Essas pestes deviam ser todas expulsas do país!”“.
Em um dos muitos quartos daquela enorme casa, enquanto o casal assiste os últimos comentários de seu gentil programa, a filha única descansa. Acorda todo dia às 11:30 da manhã, vai para a academia, almoça em algum restaurante perto de sua casa, chega à faculdade às 14, assiste uma ou duas aulas até dar a hora de se divertir.
Hoje ela vai mais, uma vez ao shopping, assistir a aquele filme, comprar mais uma bolsa e outro tênis para seu namorado playboyzinho. Ele é mais um filho de pais separados, criado com a avó dês dos 11 anos, enquanto seu pai traia sua mãe na Europa, e ela se enterrava cada vez mais, numa clínica caríssima de reabilitação. Tudo para ela era lindo, menos a atual situação com o namorado: ela tinha pego ele aos beijos com uma de suas melhores amigas, no dia da festa de seu aniversário. Da ultima vez advertira seu playboyzinho (ele estava dormindo com a sua mãe na famosa casa de praia), agora estava ciente que deveria mesmo encerrar o namoro de um ano e oito meses. Sentia-se impotente. Queria colocar silicone, pintar o cabelo, cortar os pulsos com a navalha que ganhou de seu namorado “pra se defender de bandidos”, mas já não dá! Seu mundo é inteiro vazio. Seu pai não é bem seu; já havia provocado e provado sua melhor amiga, quando ela ainda era apenas uma adolescente. A amiga, filha de um conhecido deputado, nada falou: gostava de tudo que acontecia naquele mundo. “Será isso uma vingança de sua antiga amiga?”.
Tinha quase certeza que não era filha de seu suposto pai. Não parecia em nada com ele. A mãe, drogada, vivia lhe tratando como uma boneca de vidro achava que ela tinha depressão. Na verdade era ódio, nojo que sentia da mãe, aquela velha deformada, compradora de meninos empobrecidos, judiadoras de filhas, traidora de maridos, escritora de merda, maldita. Queria se matar. Achava a sua rotina totalmente insensata e vazia. Talvez pulasse de seu quarto, tomasse uma overdose das drogas que a mãe escondia em seu quarto, talvez fosse morar na França, Turquia, Ipanema. Não gostava daquele lugar. Agora assistia e comentava aquele programa da TV; achava que ele tinha muita ousadia. Um absurdo aquilo falta de respeito com as famílias brasileiras. Católica dês de sempre, não compactuava com a forma como se fazia aquele programa inocente. “É uma porcaria!”.
Assistia mesmo porque não tinha muito que fazer. E olhava lá fora as crianças com frio e com fome. Daria um prato de comida se seus pais permitissem, mas não queria arrumar briga com eles. “Hoje eles estão até juntos esses dias. O terapeuta disse que isso tudo era uma fase da vida, q tudo iria melhorar com o tempo e tudo. Haja tudo. Tudo e nada. Agora procura dormir, sonhar com qualquer coisa que não lhe induza a tirar a própria vida. Fecha os olhos e vai esquecer.
Lá fora, as crianças brincam. Acham entre os sacos de lixo um resto de bolo, um sanduíche pouco mofado e um chocolate mordido. Hoje ganharam o dia. Amanhã irão crescer (talvez sem sorte) alimentar o ódio daqueles que os olhavam de longe, arrombar a mansão do Leblon, assassinar a todos com pau e pedras, levar tudo que lhe seja valioso e fazer tudo isso de novo. Os jornais vão gostar do fato, noticiar de forma incisiva e melancólica, alertar para outras famílias perfeitas para terem mais cuidado com suas casas, que contratem seguranças, comprem cachorros, que lutem para acabar com essa violência e impunidade, que tanto assola e degrada esse país.

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