A decepcionante Estória de dois Homens







Era uma vez uma porção de coisas que acho muito bom que cuidem de não esquecer e que, para isto, as enumero: um bar, um espelho, um gordo homem alto, um copo, um cálice, um magro homem baixo, um garçom, um soco, uma briga, uma cer­veja, um conhaque, uma rua, uma mulher, uma bronca, uma paquera, uma agressão, uma pausa, um revide.
Era uma vez uma porção de coisas que, após enumeradas como o foram, devem imediatamente ser colocadas na ordem justa e devida, para evitar maiores danos à cabeça de quem lê e que, se for desequilibrado como imagino, deve estar roxo para saber o significado do bar, do espelho, do gordo homem alto, do -copo, do cálice, do baixo homem magro, etc.
Primeiro, tomemos para cenário o bar com o espelho ao fundo e um garçom de intermeio, elimi­nando, desta forma, três das várias coisas citadas no era-uma-vez da estória.
Neste cenário entrou o homem alto e gordo que se sentou na cadeirinha do bar, pedindo um conhaque num cálice pequeno, e se escondendo atrás de um jornal que exibia as manchetes habitualmente enganadoras.
Seguiu-se, então, a entrada do homem baixo e magro que, seguindo o contraste, comandou uma cerveja num copo longo.
Por minutos nada mais aconteceu naquele bar, a não ser uma imagem que lembrava a pontuação exclamativa espanhola. De um lado, um ponto de exclamação ao inverso: um homem alto tendo, em cima, um pequeno cálice; do outro lado, a pontua­ção admirativa normalmente posta: um copo longo e, sob ele, o homem curto.
Então, de repente, surgem na estória vários dos pontos de venda citados no início e que me permito repetir para que não se percam hora alguma: uma rua, uma mulher, uma paquera, uma agressão, uma briga.
Da briga, cuidamos em seguida. Através do espelho o homem viu, detrás do jornal, o homem enorme. Num pulo de gato arrancou-lhe o jornal da mão, colocando, no nariz do homem enorme, seu pequenino dedo de homem curto.
— Pensou que nunca ia me encontrar, não é, seu cavalão cretino? — esbravejou o pequenino, sem obter nada em resposta, a não ser uma atenção mais cuidada por parte do garçom que, boquiaberto, não esqueceu de abrir a boca para ficar realmente boquiaberto (uma vez que é muito comum chamar­mos de boquiaberto os que estão unicamente estu­pefatos).
— Sabe quem eu sou? Não diga que não sabe, que você sabe muito bem quem eu sou — pergun­tou e respondeu o homem pequenino demonstrando uma auto-suficiência para o diálogo simplesmente alarmante. — Eu sou o Jurinha.
Como ainda desta vez não tivesse motivado o homem enorme para a briga, o pequenino levantou da alta cadeira em que estava, ficando, assim, menor do que já era, porque, de tão pequeno, ele, sen­tado, era maior do que em pé.
— Eu sou o marido da Helena, seu safado — apresentou-se o pequenino na ponta dos pés, posi­ção que não era cômoda, porém facilitava a apro­ximação do seu dedo em riste se não do nariz do homem enorme, pelo menos do seu umbigo — par­te do corpo de aparente inutilidade, mas de periculosidade desmedida. — Pensa que eu não sei o que você anda fazendo, seu palhaço?
O homem enorme mantinha-se calado como o cálice de conhaque que já nem tocava. E o homem pequenino (incríveis, esses dois homens!) não fazia por onde amortecer sua ira. "Como era possível ca­ber uma cólera tão grande num homem tão peque­nino?" devia estar pensando o garçom durante o tempo em que, assistindo à pendenga, limpava o salão porque de noite tinha festa.
— Minha mulher não pode passar na rua, que você vai atrás dela dizendo gracinhas e fazendo pro­postas indecentes. Com mulher de homem não se facilita, está ouvindo? Está sabendo, bicho? — per­guntou o pequenino, numa inflexão absolutamente Ipanema, que contrastava sobremodo com seu porte Lilliput.
A cerveja dormia no copo alto, o conhaque esfriava no cálice miúdo, o garçom colocava sob o balcão o produto colhido entre a boca e os olhos, e o homem pequenino, crescente de fúria, cresceu de estatura, subindo no travessão que serve de apoio para os pés. Com isto, conseguia atingir a altura do peito do homem enorme, com seu dedo que nem se via de tanto que se agitava num incitamento exasperado.
— Vou lhe dar uma surra que você nunca mais vai esquecer. Pensa que só porque você é grande e eu sou pequenininho, você pode fazer e acontecer aqui na rua? Pensa que eu vou botar o galho dentro? Pensa que eu tenho medo de você, seu babaquinha? Pra mim, maior o pau, maior a queda. Dou-lhe um soco só e você, cada vez que lembrar do soco, vai cair de novo! — berrava o homenzinho pequeno de ódio tão comprido. — Fala um troço aí. Diz uma sílaba. Fuma! Pega nesse cálice. Cale-se! — ordenou ao homem enorme que permanecia calado.
Não era uma cena que se possa ver freqüente­mente e, por esta razão, o homem pequenino fez a pausa enumerada no início da estória para conseguir um efeito dramático mais de acordo. Feita a pausa, vamos nós.
— Mulher do Jurinha ninguém paquera, por­que o Jurinha é fogo no jirau. O Jurinha bate por baixo, pra ver você cair de cima. O Jurinha é bom de pernada e de bolacha, ouviu, seu bobo alegre, paspalho, vagabundo, cafajeste, cachorro vira-lata, vaca de presépio, bode expiatório, cavalo de corri­da, gato de hotel, mosca morta, galinha comeu, rato de gaveta, rabo de arraia, cabra da peste, leão-de-chácara, vaca foi pro brejo, galo de briga, peru de pôquer, rã à doré, pé de pato, mão de onça, serra das araras.
Depois das zoológicas ofensas que conseguiu recordar para desfeitear seu êmulo, o homem pe­quenino calou-se. Das coisas enunciadas, ficou fal­tando o soco para que a estória se finde.
Foi o que o homem enorme deu na cabeça do pequenino. Um só, de cima para baixo, que lhe pro­vocou a morte instantânea, por hemorragia interna e fratura do occipital.
Que estória decepcionante!


(Do livro "O batizado da vaca, de Chico Anísio, 1972)

Comentários