O precipício e o avião (sobre aquela canção dos Paralamas)






Lá fora um dia daqueles, toda água que há no céu desabando em nossos tetos e eu me resolvendo. Ligo ou não? nunca compreendi determinados mistérios e acontecimentos. Fieis se protegem como podem, enquanto suas igrejas continuam intactas, crescendo, tomando o céu e as forças, à força. Do lado de fora do “templo” mendigos pedem esmolas. Eles não podem entrar na casa de Deus. “Há algo errado no paraíso”. O mundo se acabando embaixo d’agua e eu esperando um telefonema seu. O telefone sem crédito, um cartão telefônico emprestado e o seu número que não me sai do pensamento, junto com aquele seu vestido.
Um dia daqueles, e eu no meio da rua, procurando um orelhão longe de qualquer lugar, perto de qualquer assalto. “É muito mais que contradição”. Era dia de assistir meus filmes, alimentar minha depressão, encher a cabeça vazia de vento, mas estou aqui. Eu e uma criança de dez anos que não deve ter comido nada o dia todo. Ela roubaria minha carteira, não fosse o cachorro quente que dividi. E nada de você ligar ou eu consegui. Num bar ali perto um grupo de mauricinhos exibe seus carros modernos, telefones que falam. Não possuem cérebro, mas se vangloriam por não estarem na chuva.
Ao me verem criam um ar irônico por estar ali. Um negro, com uma camisa de Che Guevara, todo molhado na chuva, esperando uma senhora sair do orelhão para fazer uma danada de uma ligação. Ela iria ligar, eu iria ligar... já não se sabia mais de nada. “É muito mais que contradição”. Aquele menino na rua, tremendo por conta da chuva e do frio, do medo do abandono, a mercê das drogas e todo tipo de violência na cidade do Recife. Talvez ele nem imagine que o governador deve estar agora em sua casa, tomando Uísque. Ele está a tempo demais nas ruas para recordar que já foi capa de jornal, apertando a mão do prefeito na ultima eleição.
Esse muleque vai assaltar amanhã, vai atirar e matar aquele mauricinho que olha agora em nossa direção e ri. O telefone não toca. Desisto e vou embora. Naquela hora acho que ouvi uma canção dos Paralamas. “Eu caindo num precipício, você passando num avião”. O telefone não tocou aquela noite. Queria poder ter te dito que estava, apesar de toda aquela chuva, feliz. E tinha visto, mesmo que parecesse estranho, em lados bem opostos do meio fio, seu dois irmãos. “É muito mais que contradição”.

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