Aquele longo filme...






“Dona Nina, me diga uma coisa: isso presta pra moça ver?”


Era a moça mais linda da turma; ele sentava na penúltima fila, com os pés em cima de outra banca, numa sala quase cheia. Ela usava uma farda limpa e cheirosa,Cabelos longos, olhos claros, corpo esculpido por um artista. Podia se dizer, facilmente, que Castro Alves faria dela uma musa. Ele só tinha aquele boné, um sapato velho e um MP3 que não sabia se desligar. Na volta pra casa pegavam o mesmo ônibus, sentavam ao lado, às vezes. Um dia trocaram a primeira frase depois de anos estudando na mesma sala de aula: “Boa tarde, licença, de nada”. Ele também não entendeu muita coisa.
Ela acabara de completar quatro meses e quatro dias do fim de um relacionamento de quatro anos, quatro meses e quatro dias. Ele fazia quatro dias que tinha achado vinte reais. Ele pensava quatro maneiras de gastar esse dinheiro, em, no mínimo, quatro horas. Ela contando as mágoas, ele escolhendo a sorte: “qual DVD pirata vou comprar, qual sabor do sorvete, quanto vai ficar de troco, e o meu chaveiro novo?”. Ela olha pra ele, conta tudo, pede sua opinião. Ele faz um tremendo arrodeio, cita “caravana da coragem”, “De volta para o futuro três”, “conta comigo” e uma história bizarra de um cara sortudo que achou um dinheiro por ai. Claro que não dava para entender muita coisa dessa história de vida, mas ele conseguiu.
Antes de se despedirem, um beijo no rosto, um papelzinho com o número do telefone, um coração desenhado com tinta rosa e os seguintes dizeres: “Beijo, me liga!” bichinho sortudo esse. Que fazer? Ele voltou a ouvir suas músicas desconhecidas. No outro dia, antes mesmo de colocar o caderno na banca costumeira, lá na frente, ela se dirige, pela primeira vez em anos, ao fundo da sala. Pela primeira vez em anos ele tira o fone de ouvido. Pela primeira vez em anos ele tira os pés da banca para outro alguém, que não fosse seus pés, sentar. E pela primeira vez, também, em anos um dos CDFs da frente cochichou com alguém do fundão. O caos estava espalhado no mundo, naquela sala.
“A senhorita Bossa Nova sentando, conversando com o doutor Punk rock Hard Core?” a evangélica pensou que seria um sinal do apocalipse, o rapaz alegre quase teve um faniquito, os amigos do Reggae acharam que já estavam pegando pesado demais, e o babão teve certeza que seu reinado de bajulação estava ameaçado. O poeta, não achou nada. Continuou escrevendo. Escrevendo e observando. Ela queria que ele fosse, naquela tarde, assistir um filme na casa dela. Ele não entendeu nada, mas, como raramente havia algo de interessante em sua vida e naquela escola, nem tão pouco muito a se perder, balançou a cabeça e soltou, sem calcular o contrato que abara de firmar, um “Tá legal” tosco e sem noção, neutro e sóbrio, inconseqüente e só. Se todos naquela sala não estivem entretidos fazendo planos para o fim do mundo, iriam querer ser como ele: Quase o herói do filme “missão impossível”.
Lá pelas quatro ele liga pra fechar os detalhes. “Coitado. Se fosse um pouco mais esperto saberia avaliar a cama de gato que estava prestes a entrar. Ela, a maior gata que se pode imaginar, acaba um namoro, sabe lá por que, e chama, assim, do nada, o primeiro Mané que ela encontra”. “ele não deve ser tão tonto a esse ponto”. No meio do caminho ele começa a pensar em um monte de coisas. “ela quer sexo vingativo, sexo de raiva, sexo de troco, de quatro meses e quatro dias de, talvez, um pé na bunda ou um par de pontas, etc. etc. etc.”.
A essa altura só podia suar, ter vertigem, ver coisas na sua frente, cair na real, lembrar que ela só usa aquele tipo de sandália (aquele que custa o valor total de sua casa) e que nunca viu, sobre hipótese alguma, ela falar com ninguém que não tivesse, no mínimo, um carro, ou um pai com carro, ou que valesse um carro, tivesse um carro na carteira, essas coisas. Sentia-se um ferrado. Seis e meia. Aperta a campainha, avista o porteiro chegar, lhe entrega a identidade, e depois “já pode subir; Apartamento 443”. Ele traz consigo duas dúzias de camisinhas, das diversas marcas, só para garantir, e uma caixa de chocolate que lhe custou uns quatro reais, no máximo. Bate na porta, espera. “Dali pra frente é ligar o piloto automático e rezar para não fuder com tudo”.
Tudo parecia um pesadelo. A porta se abre, e a porta está mais cheirosa que turista sem experiência no Carnaval de Olinda. Minissaia. Barriguinha de fora. Blusa de alcinha com desenho da moranguinho. Cabelo solto. “que barriguinha!” melhor nem olhar. “que barriguinha!” evitar constrangimento. “que barriguinha!” depois do “boa noite boa”, mal ensaiado, senta no sofá. Como num filme escuta: “fique à vontade. Estou sozinha em casa”.
A boca fica seca. Se antes ele achava que estava com sorte, agora pira de vez. “será que eu sou um ET? Estou sonhando? Pirei de vez? Que droga puseram no meu refrigerante?” depois de um tempo (curto/longo) não tinha mais dúvida. “Se uma tremenda gostosa te chama para assistir filme na casa dela, sem mãe, pai, irmãos ou cachorro, com aquele perfume resistente a altas temperaturas e aquela microssaia, só pode querer uma coisa”... Assistir filme.
Na grande sala do apartamento enorme tocava um Cd do Lulu Santos. “Advinha o que”, “Um pro outro”, “Certo alguém” “Já é”... E podia tá tocando até RBD. E ele sabia onde tava? Não se mijou todo por que não tinha bebido, nem comido nada, o dia todo, a semana inteira, o mês inteiro, o ano inteiro, a vida toda. Antes de receber o convite para ir ao quarto, “ver o filme num ambiente mais tranqüilo”, já estava mais do que excitado, abismado, nervoso e consumido. “ambiente tranqüilo?” um lugar mais tranqüilo que aquele apartamento só um cemitério. “Ali era o paraíso?”
Tirando o fato dele não conseguir mais falar ou mexer as pernas, tudo estava sobre o mais completo controle. O filme era ótimo: “qualquer coisa de qualquer locadora”. Melhor impossível. Ela sentada no lado direito da cama, ele do lado esquerdo, sentado numa cadeira, que agora era elétrica e de balanço. Já estava inventando coisas. Era mesmo um gênio. Criando a toda hora. “Cadê meu fone de ouvido?” de repente começou a lembrar das aulas de literatura Brasileira, um verso do “Ascenso Ferreira” que sua professora havia recitado na sala meses atrás. A poesia falava alguma coisa sobre cinema. “e por que não a chamei para ir ao cinema?” boa hora de pensar nessas coisas.
Na metade do filme, já conseguia tecer alguns comentários simples. O duro era agüentar as quase quarenta e duas cenas de sexo que tinha no filme (e não. Não era Brasileiro nem pornográfico. Segundo ela, era “outra forma de representar o amo platônico”. Coisa simples. Como não concordar?). A moça no filme se contorcendo toda, ela, na cama respirando fundo. Ele travado feito um aleijado naquela cadeira cósmica.
Ela se levanta rápido, coloca pausa no filme, senta no colo do indivíduo, que há essas horas já não possui a mesma cor. Olho no olho, testa na testa. Mãos em seus ombros e uma balançada, de leve, sobre o corpo enrijecido do rapaz. “já vi esse filme antes; muitas vezes. Vamos dar uma relaxada, só pra variar. Temos a noite toda para ver/fazer esse/um filme”. Ele já nem sabia mais o que ouvia. “tá gostoso assim?” o suor frio descendo pela testa, a palavra sim travada na garganta. O corpo de estátua enfeitando o quarto, a sala, o apartamento inteiro. O acontecimento do século, a quarta maravilha do mundo sobre seu corpo, o maior segredo da NASA roçando em seu peito, a maior sensação de perigo que já sentiu em sua vida, bem ali em sua mão.
Ele cai da cadeira. Derruba a moça no chão. Bate a cabeça tão forte que acorda no outro dia, num hospital. Gagueja três, quatro palavras que agora não lembra. Depois desse ocorrido ele nunca mais assistiu filme algum, lembrou-se de poesia alguma, triou seu fone de ouvido ou falou qualquer coisa para qualquer moça bonita que sentou a seu lado, como quem não quer nada, no ônibus. Como a vida era injusta. “A vida não presta”. Ligou seu Mp3 e ouviu a canção.

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