Minutos de silêncio e a Bela da Tarde








Ficávamos a tarde toda sentados numa calçada perto da escola. eu e meus amigos. Jessé, meu primo, Jonas, amigo de infância, Bruno, Everton, Evando e mais alguns. Era comum faltar professor. Ficávamos quase todas as tardes na calçada, perdendo ou ganhando tempo, jogando conversa fora. Naquele tempo podia-se fazer isso. Acho que tivemos sorte.
Naquelas tardes fala-se de tudo. Ria-se de tudo também. Não faltavam apelidos, histórias bizarras, o receber e o enviar de cartas, os fatos e os foras, típicos da adolescência. Fazíamos uma cota para o lanche e esperávamos “a bela da tarde”. Haviam muitas musas em nosso tempo. Acho que é assim até hoje. Só os valores que mudaram.
Por volta das quatro e meia da tarde realizávamos uma espécie de ritual sagrado: Habitava na outra escola do bairro uma verdadeira princesa daquelas terras desconhecidas. Não sabíamos seu nome, nem se ela era mesmo real ou imaginária, uma espécie de ilusão coletiva. Todo santo dia ela voltava pelo mesmo lugar, passando em frente de nossa escola e de nossos olhos. Parecia ensaiado: parávamos, Fazíamos alguns minutos de silêncio voluntário, até ela se perder de nossas pobres vistas cansadas e devotadas.
Ela já tinha ganhado vários nomes. Pra mim ela era uma mistura dos poemas do Vinícius de Moraes com a música de Caetano. Mas não dizia isso. Talvez meus amigos não entendessem bem. Coisa de menino. Era um tempo bom. Tempo onde os trabalhos escolares eram feitos à mão, de verdade. Não achávamos graça na televisão e não existia a assustadora escravidão da informação pela internet. Não mascarávamos nossa identidade, nosso perfil, e as redes eram para deitar de tarde. Nada mais.
Eram meninos que não queriam ter que chegar cedo em casa para ficar reféns da Rede Globo e sua pornografia colorida e disfarçada. Meninos que ainda podiam andar nas ruas sem muita preocupação, olhando a beleza da vida que por ali passava religiosamente. Aquele era o melhor momento do dia. Me decidi poeta por conta daquelas tardes maravilhosas.
Não sei o que se passava na cabeça de meus amigos. De alguns eu posso até ter uma ideia hoje... coisa de adolescente. Na minha cabeça vinha à ideia de algum ser mitológico,um Elfo, uma Semideusa, uma Amazona... Essas coisas. E era inevitável esquecer-se de onde se estava e analisar os mistérios daquele corpo de fada, esculpido em segredo e depois acordar sem saber o que se falava.
Anos mais tarde ela veio estudar em nossa escola; nessa altura já não era mais uma miragem na tarde encantada, já havia outras e outras em seu lugar. Mas eu ainda lembrava. Ela já não era tão divina assim, como eu pensava. Ganhou um nome, aprendeu sentimentos terrenos, apelidos, defeitos, tornou-se minha amiga (o pior deles). Agora ficávamos conversando no corredor da escola, jogando outras conversas foras, já que assuntos nunca terminam. E sempre fazia um minuto de silêncio ao vê-la ir embora, só pra não desacostumar.

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