Tayou wa yoru mo kagayaku



Era 1987, tinha 20 anos, Drummond havia morrido e eu acreditei piamente que já não haveria mais poesia alguma no mundo; tudo que se pudera já fora escrito. Foi quando a vi pela terceira e última vez: mesmos cabelos e pele, batom vermelho, discreto, e seu traje elegante para um dia de domingo. Sentou-se a meu lado, me olhou nos olhos, sussurrou algo banal em meu ouvido e partiu. Me deixou o silencio como única resposta e companhia. Irônico. Eu já não tinha passado os últimos cinco anos num completo vazio?

A conheci num jardim; estava distraído, sentado, esperando alguns amigos, quando do nada ela me apareceu. Hoje posso reparar que não tinha relógio. Acho que não gostava de usa-los. Isso foi em 1982; tinha 15 anos. Ela me parecia preocupada. Me chamou de menino, sentou-se a meu lado, me contou, assim do nada, algumas histórias sobre o lugar onde estávamos, um parque, histórias que me pareceram, de inicio, bizarras. Parque 13 de Maio.

“antes não eram tão fáceis assim, as coisas. Jamais poderia eu, uma moça, sentar-se ao lado de um rapaz e pedir, assim dessa forma, para ele me dizer onde andavam as horas”. Estranho a forma como me falava, sobretudo como se eu não estivesse ali. “a senhora mora por aqui?”. Era a única coisa que me veio a cabeça naquela hora. “senhora?” retrucou ela. “estranho. A julgar pelo tempo em que vivemos não é comum um jovem de sua idade tratar os outros dessa maneira”. Começou a rir, e ria muito. Ria como alguém que brinca um carnaval do Recife como se fosse o último.

“Não entendi. Explique-me”. Ela nada disse. Me olhou friamente nos olhos, pegou em minha mão e, rapidamente, sem que esperasse, me beijou. Talvez aquele tenha sido meu primeiro grande beijo, o primeiro. Teria ela notado? E o que importava? No outro dia estava lá, no mesmo lugar, quase sem querer. Ela me veio, me sorriu, disfarçadamente, como quem poderia decifrar naquela hora as batidas do meu coração. E ela estava tão bela. Quis perguntar mil coisas; ela, que trazia as chaves do meu coração e as respostas para todos os meus segredos.

Disse qualquer coisa e logo mais eu estava em seus braços, tendo a sensação de ser o homem mais livre, o jovem mais preso, o ser humano mais confuso do mundo, em um mundo inteiro que era só meu, e que era em seus braços. Tão perto, tão longe, tão meu e tão distante. Lembro de tentar conter seu perfume. Após tal efusão de beijos e abraços, apertos, carinhos desajeitados e se despediu. Antes, fez questão de me perguntar se eu tinha alguma duvida que desejasse ser tirada. Qualquer dúvida. Perguntei seu nome e nada mais. Me disse adeus e se foi.

Muitos dias passaram-se até descobri que ela não passava de um sonho falso e bom. Não a encontrei, mesmo tendo a procurado por toda cidade do Recife, e a sua imagem quase se apagando em mim. Como são estranhos os caminhos da juventude. Em 85 a encontrei novamente. Não pude acreditar em meus próprios olhos: ela, intacta como uma fotografia antiga. O mesmo olhar frio, o claro enigma de quem sonha e não pede para acordar. Passamos aquela noite juntos, e juro, quase a pude conhecer. Era distante, mas ria silenciosa, mas nutria grandes esperanças, sobretudo a tratar do maior problema da humanidade, segundo ela: a intolerância. E de manhã, como sendo mágica, se foi.

Juro que tentei decifrar algumas palavras que ela me disse num idioma totalmente estranho, juro que tentei entender alguns comentários sobre qualquer coisa, de modo vago, ora distante, ora presente. Sobretudo tentei ignorar por todos esses anos o calor de seus beijos, esses sim, mil vezes chamo de misteriosos. Hoje já a coloquei como uma vaga lembrança do passado. Decidi fechar, de vez meu coração para o desconhecido.

Hoje coleciono recortes antigos, matérias de jornais e revistas, materiais velhos, relatos meramente passageiros de uma figura cativante que apareceu, de modo sorrateiro e despretensioso pelos mais vários momentos de nossa história, épocas e sociedades. Hoje me contento em saber que não era eu, nem a minha juventude cheia de brilho que se enganou. E meu corpo, volta e meia se sente disposto a largar tudo, retroceder a seu mundo, para ficar só mais uma vez como ela, a filha do tempo, e lhe dizer baixinho ao ouvido, em resposta a seu sussurro: “se eu queria enlouquecer, essa é minha chance”.

Comentários

Postar um comentário